Proseando com Machado...

Fonte: Arquivo pessoal.


Um modo Machadiano, pela lente realista, de ler a atualidade através da obra de George Orwell, 1984.

Mas, como assim?

Machado de Assis (1839-1908), é considerado um gênio da literatura brasileira, inclusive e prioritariamente, do período do Realismo (um dos movimentos literários do final do séc. XIX). Apesar de ter algumas obras com traços do romantismo e outras do naturalismo, predominou-se a escrita realista com suas fortes características: os toques de pessimismo; uma observação atenta e racional da sociedade para lançar aos seus personagens; um pouco de ironia e humor ; as várias digressões (uma narrativa em ziguezague); um olhar cético para o ser humano; o uso da metalinguagem, assim como da intertextualidade; enfim, uma mente que foi além.

E por que uma leitura da atualidade através da obra 1984 de George Orwell, sob uma lente Machadiana? O que uma distopia publicada em 1949 e os modos de Machado de Assis de ler o mundo e publicá-lo, têm a ver com a atualidade?

Respondo agora, com a minha lente e o auxílio das lentes destes dois escritores tão importantes para a história da humanidade, por que de fato: eles existiram! Antes que nos convençam do contrário...

Fazendo uma profunda e atenta observação das angustiantes realidades que tenho percebido na sociedade do mundo hoje, em especial a brasileira (pois é a que vivo...ou, sobrevivo), tenho me levado a mergulhar em um mar estranho das manifestações humanas, que parecem mais um universo paralelo, do que a própria realidade. Na verdade, para não me perder neste mar obscuro, onde o pessimismo e o ceticismo acerca do ser humano exalam tão fortemente, me apego ao Senhor Deus e sigo neste lamaçal agoniante.

Caro leitor, neste ano corrente de 2021, convido-vos, assim como convido o ilustre Machado de Assis, a me ajudarem nesta jornada que se segue. Além de convidar a obra de George Orwell, 1984, a se apresentar gentilmente, quando for solicitada.

Sento-me com Machado no banco da praça (navegando nas muitas notícias que são bombardeadas diária e espantosamente) das ruas desta nação...aqui, na minha época; e, coloco-me a compartilhar as mazelas estranhas da sociedade desta geração, para que sobre ela escreva algo de útil, em meio às inutilidades marteladas. 

Portanto, levo comigo um livro distópico de George Orwell, intitulado como 1984, publicado décadas depois da existência de Machado e apresento ao gênio realista. Mais espantosa é a sua reação! E me convida, a juntos escrevermos uma visão da sociedade de 2021. Não poderia haver alguém com tamanha sagacidade para me ajudar a escrever algo tão conflitante, pois que assim ele fez em suas famosas obras! 

Conto-lhe que a primeira vez que li 1984 (com sua licença, Orwell), fiquei bem angustiada com a situação apresentada no livro, e senti um profundo desejo de não viver em um mundo como aquele desenhado. Existia pois, uma tal de "polícia do pensamento"; pensamentos que eram crimes ou "pensamentocrime"; além das várias situações grotescas em que crianças mandam, desmandam e denunciam seus pais; e ainda com um "novidioma"....Ai Jesus! Minha alma estava pouco suportando ler, aquela falta de liberdade individual e coletiva apresentada por Orwell. Parecia que me faltaria o ar (sem exageros)! Mas segui com a leitura até seu desfecho, que na minha opinião (se é que posso tê-la), um triste desfecho.

Com toda a atenção aos detalhes que fui lhe relatando, Machado queria ouvir mais sobre este senso de realidade atual que em mim brotava, com uma obra tão antiga. E me perguntou o porquê da existência deste "link" com a sociedade que vivo, e por que me angustiava tanto a releitura. Respondi-lhe, o que agora exponho. E mesmo sabendo que ele gosta das coisas o mais objetivamente possível explanadas, preciso também me utilizar de um pouco de subjetivismo, e também de elementos metafísicos:

- Muito bem, caro Poeta, inicio descrevendo como vejo o mundo: como uma grande panela de pressão prestes a explodir! Na realidade, falo aqui, somente das ações humanas (que me parecem estar influenciadas de algum modo em seus psicológicos e na esfera espiritual, por algo muito ruim!); isto por que, se além deste mar de lamaçal sobre o qual exploro, ainda citar a fúria da natureza mundial que vai além de "discursos ambientalistas", precisaria de muitos anos para escrever. Tenho pouco tempo! Preciso sintetizar...

"- Você é um traidor! - o menino gritou. - Você é um criminoso do pensamento! Você é um espião eurasiano! Vou atirar em você, vou vaporizar você, vou mandar você para as minas de sal!" (ORWELL, 2021). Winston, foi ameaçado por crianças que foram manipuladas e que, sendo militantes, saíam por aí a entregar adultos  (inclusive seus pais), por condutas contrárias às ideias do "partido".

- Percebo meu caro, que há uma onda, aliás, um tsunami que ao se aproximar da costa brasileira, tem levado muitos à morte da alma. Sim, por que ela abalou as estruturas familiares! A "polícia do pensamento", está ferozmente, vaporizando pessoas que não podem ter opinião (pensamento) própria e que, estão sendo de certa forma, oprimidos por pensar diferente do "grande irmão". Olhos estão voltados para os "diferentões" deste mundo atual. Os "dois minutos de ódio", são contados e vivenciados por muitos, a cada dois minutos, desde às 0h00. Este tsunami, vem se formando já há anos, e hoje já começa a ficar notório o rastro de destruição que ele vem deixando.

- Preciso ainda te dizer caro Machado, que o idioma fabuloso, que é um dos grandes patrimônios da humanidade, que você ajudou a construir, está se tornando sutilmente em uma espécie de "novidioma". Acredita que Orwell, de certa forma, previu essa lástima? Uma diminuição e um jogar abismo abaixo, o nosso meio mais belo de comunicação que está sendo encaminhado ao longo de séculos? Aliás, tenho que te contar: estão querendo neutralizar a língua portuguesa de forma tal qual, estranha.... Ah! Não se assuste! Lutaremos para que isso não prevaleça! Somos poucos guardiões, mas sensatos e decididos a não ceder! 

- O que tens a me dizer, prezado gênio? O que me diria o Dr. Semana?

Parece que assim me respondeu, pelo menos foi assim que escutei e entendi, com a sanidade que ainda tenho:

- Cara vivente de tempos quase finalizados, quero esclarecer que, em meus tempos, também denunciei em minhas obras, algumas facetas estranhas da minha geração, e que portanto, pelo que me parece, têm se estendido no tempo (as facetas e as obras). Não desista nunca de lutar pelo velho, bom e belo idioma que pelo visto, querem desmerecer o que as mentes brilhantes construíram e que já deixaram pronto para o uso, para que houvesse uma saudável comunicação. Parece que Orwell, previu algo muito mais a frente do meu tempo e do dele também! 

- Estou estupefato com o que me relatas! Querem de fato, calar as vozes uns dos outros? Aliás, os pensamentos? Como isso é possível? Não podes ter opinião? Que lástima!

- Mas não te explodas junto com essa massa cruenta nesta grande panela de pressão. Pense e sem medo, opina com a elegância estilística e espiritual da elite das almas que vivem em busca do ápice da metafísica, para habitar este mundo que vos rodeia. Não te esqueças das boas heranças que todos nós que aí já não habitamos, deixamos como grandes tesouros! Não se insira nos "dois minutos de ódio", a nenhum momento pois, parece-me prejudicial. Ao contrário, retira-te e alimente-se da sabedoria.

- Me dizes que a tenra idade de seu tempo, não passa mais um bom tempo com sua família? Parece ainda que, foram entregues nas mãos do Estado, correto? Oh grande risco que causam à humanidade! Por certo, está para chegar tempos em que nem "pensamentocrime" existirá, por que não haverá pensamento, ao que me parece.

 REFERÊNCIAS:

ORWELL, George (1949). 1984. Tradução: Karla Lima. Jandira, SP: Principis: 2021.